11.01.2009

O RELÓGIO DO MEU AVÔ
Carlos Gaspar*

Acho que já contei muita coisa sobre minha vida em Viana, onde nasci. Até um livro consegui escrever. Mas, nem tudo ficou completamente visto e conhecido, por conta da fragilidade da minha memória. Às vezes, como agora, sem que eu provoque, me ocorre algo inesperado, que me remete ao passado. Sinto-me, então, no dever de transmiti-lo, em especial aos que me acompanham nesta trajetória dominical.

Novamente vem à tona a figura do meu avô, de quem muito falei no Sobrado Amarelo, publicado por mim há quase dois anos. O caso é interessante e muito me compraz em relatá-lo, posto que aviva em minha lembrança a figura daquele lusitano, baixinho na altura do corpo, bem como de alguns dos meus ancestrais.

À entrada de sua casa, a última em que morou meu avô, indo para os lados da Barreirinha, existia um relógio antigo, que levara ao se mudar da Rua Grande, onde antes residia, quase em frente ao cemitério. Era ele, o relógio, bem diferente de um outro, mais moderno, que meus pais adquiriram aqui em São Luís. Além da forma, da aparência, da feitura, distinguiam-se eles, ainda, pelo som do badalar das horas.

Passaram-se décadas e jamais aquele relógio me saiu da cabeça. Nela se alojara à época da minha juventude, já sendo eu, à ocasião, um quase notívago. Enquanto a casa dormia, deitado em uma rede branca, varandas largas, eu permanecia acordado, ouvindo o tique-taque do marcador de horas. E, com periodicidade, dele escutando o anúncio da noite a se distanciar, e da aurora a se aproximar.

Nas dobras da vida, adulto, casado, de cabelos começando a encanecer, punha-me sempre a recordar do antigo relógio de parede, de origem norte-americana, mais que secular. Tanto dele se me fazia sentida falta, que, ao passar pela loja de um pretenso antiquário, resolvi comprar um outro, semelhante, uma réplica, no intento de substituí-lo, e atender aos reclamos da minha saudade.

Em uma das idas que fiz a Viana, voltei à casa do meu avô, no impulso das recordações do intermitente e estreito período em que ali passei com ele. E, novamente, me deparei com o velho relógio, a mesma feição, o mesmo tique-taque, o mesmo badalar das horas.

Ao chegar à porta da modesta morada, recebera-me a Teodora, servidora da família desde novinha, agora um tanto alquebrada pelo tempo. Do que eu desejava, nada podia ela adiantar-me. Somente Maria de Jesus, minha tia, a mais nova de todas, que havia, em definitivo, se transportado para Belém.

Como todo objeto de estimação, esse também possui a sua história. E era por mim desconhecida, até poucos anos atrás. Fui sabê-la por intermédio de uma das irmãs de mamãe, hoje das mais velhas. Contou-me que o relógio, de fato, em parte pertencia à minha mãe. É que a vetusta máquina de marcar as horas havia sido da minha avó materna, levada para o novo lar constituído a partir de quando contraíra núpcias com o meu avô.

E, assim, a despeito do falecimento prematuro dela, de nome Rakima, o relógio ficou na posse do seu ex-marido, sem que ele houvesse realizado a divisão dos bens móveis existentes. E a ser feita, anos depois, a partilha do relógio, dele caberia, em meação, um quinhão aos meus primos, em número de cinco, filhos de Rosica, a primeira filha do casal; e a nós outros, treze irmãos, filhos de Zizi, a segunda, ambas geradas pela união dos meus avós Rakima e Delfim.

Logo percebi que o relógio do meu avô não era propriamente seu, e sim de um exército de homens e mulheres que ele fez habitar estas terras do Maranhão. Todavia, é absolutamente verdade, até o dia de sua morte o relógio teoricamente lhe pertenceu, dado que nunca lhe reclamaram, e a sua posse foi transmitida aos filhos caçulas, que viviam em sua companhia.

Foram-se as décadas e o inesperado se deu. Estava eu no salão da minha empresa comercial, a observar o que acontecia, e logo a mim se dirigiu um rapaz. Apresentou-se dizendo ser meu primo, filho daquela minha tia Maria de Jesus, falecida em Belém. E puxou o assunto do relógio, dizendo que estava em seu poder, e que desejava vender-me, sabendo da grande vontade que eu tinha em torná-lo meu.

A princípio fiquei em dúvidas sobre se era ele um parente meu, ou apenas alguém que conhecesse a história do relógio e quisesse me impingir algum bastante parecido com o original, aguçando, desse modo, o meu sentimento. Inseguro, divaguei com habilidade, ao aprofundar assuntos familiares, os mais diversos possíveis, com a finalidade de certificar-me da verdade, em face ao que ele dizia. Por fim, convenci-me de que se tratava de pessoa certa, e que em seu poder estava o relógio da casa do meu avô. Terminei por adquiri-lo, em cujo pagamento acrescentei uma dose do valor afetivo que me ligava a ele, inteligentemente reclamado pelo vendedor.

Agora, ao entrar no meu escritório, onde o coloquei, fico olhando para a parede, e, através de tão precioso objeto, revivo as saudosas férias escolares, embora poucas, que em Viana experimentei, no convívio com o meu avô. E logo me vejo deitado na rede branca, varandas largas, a escutar o som harmônico de sua engrenagem e o cadenciar do pêndulo que, a cada passo, com suas sonoras badaladas, anunciava a despedida da noite e a aurora adentrando no horizonte. Era o relógio da casa do meu avô.

*Colaborador DRT 45/91, escreve aos domingos na seção Opinião
do jornal O Imparcial em São Luís do Maranhão.
E-mail: pgaspar@elo.com.br