14.12.2008

RELEMBRANÇAS MATINAIS
Carlos Gaspar*

Ontem, ainda cedo, com o sol a invadir a copa do meu apartamento, ao tomar o primeiro alimento, tive a sensação de imensa alegria. O dia me seria ótimo, imaginei, com esse prenúncio de irradiante beleza matinal. Veio-me a sensação, quanto a mim, de que tudo iria se dar sem tropeços, sem os naturais aborrecimentos do presente, salpicados dos momentos inesquecíveis da minha juventude em floração.

Para completar esse meu estado de espírito, escutei o trinar de Buduzinho, a ave doirada, o pequeno canário-belga que já me acompanha há seis ou sete anos, presente do meu irmão Raimundo. De uns meses para, cá ele andou mudo, quase indiferente ao ambiente que o circunda, e me passou pela cabeça que a idade já lhe embargara a voz. Mas, a natureza é perfeita, sábia e indecifrável. Jamais supus que ele, Biduzinho, voltasse, de novo, a proporcionar-me o prazer de escutar o seu inigualável canto.

Levantei-me da mesa de café, onde fazia a refeição matinal, e busquei o escritório. Precisava escrever esta crônica, contudo, antes de iniciá-la, o computador ligado, logo resolvi abrir a minha caixa de e-mails, para certificar-me das mensagens que por acaso teriam chegado. E, de fato, foram muitas, como de costume. A maioria verdadeiros lixos.

Dentre as boas informações que recebi, que são raras, encontrei uma que me trouxe um interesse especial. Mexeu com a minha sensibilidade, com as minhas emoções, ultimamente incontidas. A idade vai se alongando e com ela cada um de nós se torna mais frágil. Pelo menos é o que vem acontecendo comigo.

Dizia a remetente do escrito que havia sonhado com minha mãe. Estavam ambas em um magazine, ela vestida de rosa, cabelos molhados e parecia que se achava pronta para ir a uma festa. Estava linda e, de repente, sumiu. Achei estranho, porquanto as duas em raro se viam, passavam anos distantes uma da outra, embora sem que perdessem a amizade que as ligava.

Esse fato, em aparência de pouca importância, mexeu comigo. Aliás, tenho a mania de querer decifrar os sonhos, como se eles fossem algo suscetível de se transformar em realidade. Coisas, talvez, de quem seja um discreto supersticioso, assim como a maioria das pessoas o são.

Pois bem, precisava ir ao centro da cidade. O meu alfaiate já cansara de me telefonar, para que eu fosse provar uma roupa. E eu resistia à chamada, pelo pavor que sinto do trânsito que agride esse local, onde a preservação não existe e as antigas casas e os solarengos sobradões vão se desfigurando ou se convertendo em ruínas.

Visando a encurtar o percurso, em determinado trecho desci pela Rua de Santo Antônio, longe de pressentir o aperto que iria sentir em meu coração. Passaria ali, conjeturei, como se fosse uma via qualquer, sem que nada singular me fosse despertar. Várias décadas ali vivera, em companhia de meus pais e meus irmãos, e as lembranças de muito já haviam sido sepultadas pelo tempo, presumi.

Esqueci-me, no entanto, que as marcas deixadas pela meninice e pela juventude jamais desaparecem. Guardam-se elas sem prazo de serem apagadas, escondidas no nosso subconsciente, de modo que despertam somente no momento exato. E foi, sem dúvidas, o que aconteceu. Eu me revi por inteiro, cercado de um mundo de gente que já não faz parte da minha atual convivência.

Fiquei, então, a fazer retrospectivas, embora estanques. E nem me apercebi do cuidado que me impunha o movimento do automóvel que eu mesmo dirigia, vez que, distraído, poderia causar algum acidente. É que eu, ao revolver essas reminiscências que em mim estavam armazenadas, nelas me fixei, sob o êxito de episódios que não tornam mais.

Concentrei meu pensamento na casa verde em que morávamos, desde 1948, fechada em definitivo após a morte do meu pai, o último dos seus moradores. E nela, no seu interior, lá estávamos nós, treze, no total, sem contar mamãe e papai. Uma zoada, uma confusão, brigas e gritarias entre os menores na idade, porém divertimento e prazer sem limites.

A morada-inteira era, na realidade, o nosso mundo. Nela fazíamos as coisas mais impossíveis. De estudos a pulitricas, sem que ninguém pudesse nos conter, a despeito de não faltar o rigor do chefe da família misturado com a contemporização de mamãe, sempre paciente com todos os filhos. O seu chinelo de corda era bem mais suave, quando nos disciplinava, que o cinturão de papai, em atividade nos casos que julgava mais grave.

O maior temor prendia-se ao jogo de bola, no plano da rua, já nas imediações em que ela cruzava com a do Ribeirão. O receio de que o nosso velho ali nos encontrasse era tão grande quanto à punição que poderíamos sofrer. Todavia, a irreverência da juventude supera ao imprevisível, e passávamos por cima desse grave receio.

Maior pavor, sim, era da chiquita, da chiquita-bacana, camburão da polícia civil que fazia ronda pela cidade, para recolher os meninos vadios e, posteriormente, entregá-los aos seus responsáveis. Aí sim, o medo era enorme, entretanto tínhamos a precaução de colocar atento um “reserva” dos times que disputavam a “pelada”, para avisar-nos ao menor vislumbre do tal camburão, dado que o desgosto do nosso pai seria tão grande que nem sabíamos o que, já em casa, resgatados, poderia acontecer.

Bem, tinha pressa e resolvi seguir em frente, sem esquecer o sol da manhã, o cantar de Biduzinho e o e-mail vindo de uma amiga, a relembrar a minha mãe, na beleza do seu rosto e na bondade que guardava no coração.

*Colaborador DRT 45/91, escreve aos domingos na seção Opinião
do jornal O Imparcial em São Luís do Maranhão.
E-mail: pgaspar@elo.com.br